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29 de maio de 2015

Receita poética

            
Ilustração de Gurbuz Dogan Eksioglu


Desfaçam uma batata, depois de bem
cozida, num prato de água quente. Não ponham
sal, que faz mal à saúde, nem azeite, que
está caro. Partam a côdea aos pedaços e
deitem-na no prato. Se houver ervas à volta,
nem que sejam urtigas, também servem
para dar sabor. Se não houver, pensem
nelas, e juntem-lhe a memória de uma rodela
de chouriço. Mas não muito, porque até
a memória está pela hora da morte. Depois,
soprem na sopa: não vale a pena comê-la
muito quente, o sabor perde-se no queimado
da língua. Comam as côdeas de pão com
tempo e proveito: é pão que já tem uns
dias, e que deveria ter sido lançado
aos pombos, mas os pombos já foram
comidos por quem se apressou a
apanhá-los. E depois do pão, passem
ao caldo: e comam devagarinho, mesmo
que já esteja frio. E quando acabarem,
consolem-se com um único
pensamento: amanhã pode
não haver mais!

Nuno Júdice,"Sopa de pedra (variante)" in O fruto da gramática, D. Quixote, 2015, 2ª ed., p. 40