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23 de abril de 2015

Pesadelo com livros

Ilustração de Tony Diterlizzi
Outro pesadelo.

Vejo o mesmo grupo de adolescentes, com a idade de Hanna (mas a ela não a vi), com catorze, quinze anos, todos com trissomia 21, a deitarem para o fundo de um poço livros em diferentes línguas. Lembro-me perfeitamente de algumas capas, de alguns nomes esquisitos, até de alguns alfabetos absolutamente impenetráveis. As raparigas (a certa altura pareceram-me todas raparigas, com aquela cara semelhante, com saia verde de um uniforme de colégio), as raparigas mandavam para o poço livros em francês, em italiano, em búlgaro, em russo, em inglês, em alemão - e cada livro que chegava lá a baixo, ao fundo do poço, era recebido com o som de uma água enlameada; e eu - que, estranhamente, estava ali, no meio do grupo, a assistir, sem participar, sem fazer nada, aceitando -, eu, então, debruçado sobre o poço, ali estava espantado, era essa a palavra, a ver cada um dos livros primeiro bater com certa força nos pequenos centímetros que ainda restavam de água e, depois, segundo a segundo, a desaparecerem, pelo menos em parte, engolidos pela lama.


Gonçalo M. Tavares, in Uma menina perdida no seu século à procura do pai, Porto Editora, 2014, 1ª ed.,p. 151