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15 de outubro de 2015

O olhar aquilino do Falcoeiro

Ilustração de Alex Pelayo

De vez em quando apontava os binóculos para casa, conseguia ver Lola na sua lide caseira, pendurando roupa a secar numa corda. Deixara de gostar dela há muito, viviam juntos mais por hábito do que por outro motivo qualquer. A aversão dela aos falcões fazia-o ter vontade de a deixar, mas enquanto lhe tratasse da roupa e lhe pusesse comida na mesa ao fim de tarde, não pensaria nisso.


Miguel Miranda, "O olhar aquilino do Falcoeiro", in A fome do licantropo e outras histórias
Porto Editora, 20014, 1ª ed., p. 43

13 de outubro de 2015

Cantiga


 
Ilustração de Yoshinori Mozneko

É pelo teu rosto em que as marés passam,
pelos teus lábios em que voam gaivotas,
pelos teus dedos em que a luz perpassa,
pelos teus olhos que me traçam as rotas,

que este barco encontra o caminho,
que este dia descobre que não é tarde,
que as palavras se bebem como vinho,
e o fogo não queima quando arde.

É no que me dizes quando a noite fala,
no que perdura da manhã que se esquece,
no que é dito em tudo o que se cala,

e não precisa de ser dito quando amanhece. 



Ilustração de Jen Corace
Pode ser o amor tantas vezes sentido,
ou só aquilo que vive no coração,
pode ser o que pensava ter esquecido,
e regressa agora pela tua mão.

Quantas vezes já foi primavera,
e logo aí as flores morreram:
até ao dia em que nada ficou como era,

e todas as folhas mortas reverdeceram.

Nuno Júdice, in A matéria do poema, D. Quixote, 2008, 1ª ed., p. 96

Dedicatória



Ilustração de Kristian Adam
Para ti, de corpo aberto como a taça do
horizonte, onde se derrama o vinho fresco
da madrugada, é o poema que os deuses
esqueceram numa antiga encruzilhada. Leio-te
com a voz do vento cada uma das suas
palavras; e elas soltam-se do verso, como insectos
luminosos, roubando aos teus olhos um
cenário de clareiras e colinas.

No chão, onde a toalha do amor se estende,
nasceram as flores inextinguíveis da manhã. Conto
as suas pétalas num exercício de lenta
matemática, dando cor a cada número; e
os teus dedos tingem-se do seu fulgor,
roubando à terra os verdes que a primavera
declina, e ao céu os tons de azul com que
o verão encheu a tua sombra.

Ilustração de Mrzyk Moriceau

Sacrifico ao rigor da imagem o perfil
que a transparência sonha; e saboreio a água
fresca do ribeiro que corre nos teus lábios,
quando me falas, e todas as aves se juntam
no teu colo de nuvem. Despes, devagar, a túnica
da tarde; e um resto de melancolia envolve
o gesto que amadurece o desejo,
como um fruto, quando os corpos caem.

Ilustração de Necdet Yilmaz
Tu, cujas mãos se libertam do espelho,
desenhando a linha que o sonho atravessa.

Nuno Júdice, in Fórmulas de uma luz inexplicável, D. Quixote, 2012, 2ª ed., p. 26

 

Para ti, de corpo aberto como a taça do
horizonte, onde se derrama o vinho fresco
da madrugada, é o poema que os deuses
esqueceram num antiga encruzilhada. Leio-te
com a voz do vento cada uma das suas
palavras; e elas soltam-se do verso, como insectos
luminosos, roubando aos teus olhos um
cenário de clareiras e colinas.
No chão, onde a toalha do amor se estende,
nasceram as flores inextinguíveis da manhã. Conto
as suas pétalas num exercício de lenta
matemática, dando cor a cada número; e
os teus dedos tingem-se do seu fulgor,
roubando à terra os verdes que a primavera
declina, e ao céu os tons de azul com que
o verão encheu a tua sombra.
Sacrifico au rigor da imagem o perfil
que a transparência sonha; e saboreio a água
fresca do ribeiro que corre nos teus lábios,
quando me falas, e todas as aves se juntam
no teu colo de nuvem. Despes, devagar, a túnica
da tarde; e um resto de melancolia envolve
o gesto que amadurece o desejo,
como um fruto, quando os corpos caem.
Tu, cujas mãos se libertam do espelho,
desenhando a linha que o sonho atravessa. - See more at: http://indigohorizonte.blogspot.pt/2013/11/dedicatoria-nuno-judice.html#sthash.7reqRlWT.dpuf

10 de outubro de 2015

Tempo instável

Ilustração de Lucy Campbell

Logo a seguir ao almoço começa a chover. É
uma sequência que não tem nada de lógico, e também
podia ter dito que, logo antes do almoço começou a chover. A
lógica disto é que foi depois de almoço que fui à janela
e ouvi o ruído da chuva; e quando abri a janela
a chuva caía com toda a força, isto é, com tanta força
que, na casa em frente, os lençóis pendurados a secar
escorriam água. Na realidade, a chuva que cai no outono
também traz a melancolia que atravessa as almas e as
enche de pensamentos obscuros. Ao ver esses lençóis
encharcados, pensei na cama onde estiveram, e nos corpos
que sobre eles se abraçaram, longe da chuva e da monotonia
dos cinzentos outonais. Com tudo isto, nem reparei
que a chuva deixou de cair, um pedaço de sol
despontou de entre as nuvens e os prédios, e os lençóis
ganharam vida, como se ainda sentissem o calor
desses corpos que o amor juntou.

Nuno Júdice, in Fórmulas de uma luz inexplicável, D. Quixote, 2012, 2ª ed., p. 80

3 de outubro de 2015

Um hipnotizador no fio da navalha

Valter sorriu. Apreciar esquilos era uma atividade relaxante. Estava cansado da vida de hipnotizador. Demasiado poder sobre a vida dos outros era um tédio. Habituara-se a dominar as pessoas que o rodeavam através do hipnotismo, o que lhe dava ao início algum gozo, depois tornara-se uma compulsão. Aos poucos, transformara-se numa tortura, a que não conseguia fugir. 

Ilustração de Sara Tyson

Para comer, hipnotizava o empregado do restaurante. Para obter bens, desde roupa até ao mais sofisticado relógio, hipnotizava o funcionário da loja respectiva. Para estacionar num parque cheio, hipnotizava um condutor, que logo retirava  o carro, vagando um lugar. Vivia fascinado com o seu poder, mas ao mesmo tempo a vida parecia-lhe pouco interessante, baça, até dolorosa.


 Miguel Miranda, "Um hinotizador no fio da navalha" in A fome do licantropo e outras histórias
Porto Editora, 2014, 1ª ed., p.54