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29 de junho de 2015

Dios quiso que la tierra fuese toda una

Ilustração de Raffaele Conte
 

Dios quiere, el hombre sueña, la obra nace. 
Dios quiso que la tierra fuese toda una,
que el mar uniese, ya no separase.

Consagróte, y fuiste desvelando la espuma,


y la orla blanca fue de isla en continente,
clareó, corriendo, hasta el fin del mundo,
y vióse la tierra entera, de repente,
surgir, redonda, del azul profundo.


Quien te consagró te creó portugués.
Del mar y de nosotros en ti nos dio señal.
Cumplióse el Mar, y el Imperio se deshizo.
¿Señor, falta por cumplirse Portugal!



Fernando Pessoa, "El Infante" in Mensagem (trad.)

28 de junho de 2015

Dieu veut, l’homme rêve, l’oeuvre naît

Ilustração de Raffaele Conte

Dieu veut, l’homme rêve, l’oeuvre naît,

Dieu voulu que la terre fût une seule

Que la mer unît, qu’elle ne la séparât jamais


Fernando Pessoa, in "L'infant", Mensagem (trad.)

27 de junho de 2015

O Infante

Ilustração de Raffaele Conte


Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.

Deus quis que a terra fosse toda uma,

Que o mar unisse, já não separasse.

Sagrou-te, e foste desvendando a espuma.


E a orla branca foi de ilha em continente,
 

Clareou, correndo, até ao fim do mundo,

E viu-se a terra inteira, de repente,

Surgir, redonda, do azul profundo.


Quem te sagrou criou-te português.

Do mar e nós em ti nos deu sinal.

Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.

Senhor, falta cumprir-se Portugal!


Fernando Pessoa, in Mensagem

23 de junho de 2015

Classificar o inclassificável

Ilustração de Stephanie Graegin

Os classificadores de coisas, que são aqueles homens de ciência cuja ciência é só classificar, ignoram, em geral, que o classificável é infinito e portanto se não pode classificar. Mas o em que vai meu pasmo é que ignorem a existência de classificáveis incógnitos, coisas da alma e da consciência que estão nos interstícios do conhecimento.
                
                                    
                       Bernardo Soares, in Livro do Desassossego, Assírio&Alvim, 2003, 4ª ed., p.341


22 de junho de 2015

Sonho e realidade

Ilustração de Alessandra Vitelli

Talvez porque eu pense de mais ou sonhe de mais, o certo é que não distingo entre a realidade que existe e o sonho, que é a realidade que não existe. E assim intercalo nas minhas meditações do céu e da terra coisas que não brilham de sol ou se pisam com pés - maravilhas fluidas da imaginação.


Bernardo Soares, in Livro do Desassossego, Assírio&Alvim, 2003, 4ª ed., p.341

21 de junho de 2015

Instinto



Van Gogh

...o sagrado instinto de não ter teorias...


Bernardo Soares, in Livro do Desassossego, Assírio&Alvim, 2003, 4ª ed., p.248

18 de junho de 2015

Não ler

Ilustração de Yuri Kuznetsov

Não ler, pensei, era como fechar os olhos, fechar os ouvidos, perder sentidos.

Valter Hugo Mãe, in A desumanização

17 de junho de 2015

Asas libertadoras

Ilustração de Elina Ellis

Que difícil é a vida dos homens. Eles não têm asas para voar por cima das coisas más.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in A Fada Oriana


16 de junho de 2015

Morada

Ilustração de Tamypu
Sozinho na grande cama,
perdido nos seus frios corredores,
ouço, de quartos interiores,
a tua voz que me chama.

Do fundo da noite enorme
onde pouso a cabeça por fora
a tua voz de alguém acorda-me
como num sono insone.

Como se a tua voz agora
antigamente me chamasse
e tudo, menos a tua voz, faltasse
fora da minha memória.


Manuel António Pina, in Poesia, saudade da prosa - uma antologia pessoal, Assírio&Alvim, 2012, 2ª ed., p. 47

14 de junho de 2015

Liberdade



Ilustração de Paulina Góra (Antosz)


Uma gaiola foi à procura de um pássaro.


Franz Kafka, in Aforismos (escritos na localidade histórica de Zürau), Assírio&Alvim, 2008, p. 40

10 de junho de 2015

Conduzir o caminho

Ilustração de Laimonas Smergelis


Tão firmemente como a mão segura uma pedra. Segura-a, porém, tão firmemente só para a atirar ainda mais longe. Mas também a essa distância conduz o caminho.


Franz Kafka, in Aforismos (escritos na localidade histórica de Zürau), Assírio&Alvim, 2008, p. 45

8 de junho de 2015

O verdadeiro caminho

Ilustração de Nguyễn Minh Hải

O verdadeiro caminho passa sobre uma corda que não está esticada ao alto, mas rente ao chão. Parece antes destinar-se a fazer tropeçar do que a ser percorrida.

  Franz Kafka, in Aforismos (escritos na localidade histórica de Zürau), Assírio&Alvim, 2008, p. 27

7 de junho de 2015

Perfeição


Ilustração de Nicoletta Ceccoli 


A partir de um certo ponto já não há regresso. Há que atingir este ponto.


Franz Kafka, in Aforismos (escritos na localidade histórica de Zürau), Assírio&Alvim, 2008, p. 31

6 de junho de 2015

Conversa nocturna

Talvez a noite me encontre um dia. Sentar-me-ei com ela, a conversar. 

Ilustrações de Pinwheel Bunny 

Perguntar-me-á: "Quem és?" - "Um dos habitantes", responderei; mas sem ter a certeza disso. Entre a noite e o dia, quem pode escolher, ao certo, o seu lugar? E ela há-de insistir, adivinhando a minha dúvida. Então, aproximar-me-ei dela, pegarei nas suas mãos de treva, e puxá-la-ei para mim. "E tu, quem és?" E ela ficará em silêncio, pesada e nocturna, como se a morte fosse a sua segunda natureza. 



"Amo-te", digo-lhe. E a noite dissolver-se-á em mim, até nascer o dia.


                                                        Nuno Júdice, in O fruto da gramática, 2015, 2ª ed., p. 55

3 de junho de 2015

O fogo que me deixaste

Ilustração de Mamzelle Roüge

De noite, quando o frio entra pelas casas, e um resto de solidão gela o fundo da alma, aqueço-me com o fogo que me deixaste.

De manhã, recolho as suas cinzas.


Nuno Júdice, "Oito fragmentos" in O fruto da gramática, 2015, 2ª ed., p. 89 (fragmento 8) 

1 de junho de 2015

A menina do laranjal

Ilustração de 度薇年 


Era um laranjal de folhas verdes, brilhantes. Como se um pincel com verniz as tivesse pintado uma a uma. E um dia veio uma menina pelo laranjal e sentou-se debaixo de uma laranjeira. Tinha os cabelos negros e caídos até aos ombros e um avental de flores amarelas. 
E sentou-se e abriu um livro. Era um livro de poemas: poemas são palavras que nos lembram que somos vivos, que temos olhos, ouvidos, paladar, duas mãos que poisam em troncos rugosos, na seda da própria pele. 

E a menina começou a ler. O perfume da terra misturava-se com o perfume das folhas do laranjal. Mas eram só folhas? Que perfume... 

(...)
Ilustração de Nataliya Derevyanko

E a menina ri. Senta-se de novo debaixo de uma laranjeira. 
Tem ainda uma grinalda de flores brancas nos cabelos negros. 
E o livro está fechado sobre o avental de flores. O livro de poemas. 


Matilde Rosa Araújo, "A menina do laranjal", in O Sol e o Menino dos Pés Frios
Livros Horizonte, 1998, 9ª ed. pp. 51, 53