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30 de abril de 2014

O que é um poeta na terra?

Ilustração de Sonia MariaLuce Possentini 

O que é um poeta na terra? É alguém que ensina a ver. Alguém que não se conforma que o olhar dos homens fique capturado pelo breu, pela desesperança ou pelo medo. É alguém que nos infernos e purgatórios da história rasga saídas criativas, fendas para olhar mais longe, miradouros debruçados sobre um futuro outro, capaz de estilhaçar a fatalidade. Claro que a matéria de trabalho de um poeta é a palavra. Mas a palavra não é só palavra: é sede, é desejo de comunicar, é mergulho na realidade para a compreender melhor, é a sabedoria de perceber que o visível é também um signo do invisível e que não se pode separar o audível do inaudível, a palavra do silêncio.


José Tolentino Mendonça, "Em memória de Vasco Graça Moura: Um poeta é alguém que ensina a ver", in
SNPC | 29.04.14

28 de abril de 2014

blues da morte de amor


Ilustração de Toshiyuki Enoki


já ninguém morre de amor, eu uma vez 
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida,
mas afinal não morri, como se vê, ah, não,
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.

a gente sopra e não atina, há um aperto
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu nunca tive jeito, ah, não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing, minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.

há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
ao acender das luzes, uma aqui, outra ali.
mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha
no lusco-fusco da canção parar à minha casa,
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,
minha querida, toda a gente do bairro,
e então murmurarei, a ver fugir a escala
do clarinete: — morrer ou não morrer, darling, ah, sim.


                                         
                                         Vasco Graça Moura, in Antologia dos Sessenta Anos

insinceridade

Ilustração de Carlotta Castelnovi
quis-nos aos dois enlaçados 
meu amor ao lusco-fusco
mas sem saber o que busco:
há poentes desolados
e o vento às vezes é brusco

nem o cheiro a maresia
a rebate nas marés
na costa de lés a lés
mais tempo nos duraria
do que a espuma a nossos pés

a vida no sol-poente
fica assim num triste enleio
entre melindre e receio
de que a sombra se acrescente
e nós perdidos no meio

sem perdão e sem disfarce,                                                                
sem deixar uma pegada
por sobre a areia molhada,
a ver o dia apagar-se
e a noite feita de nada

por isso afinal não quero
ir contigo ao lusco-fusco,
meu amor, nem é sincero
fingir eu que assim te espero,
sem saber bem o que busco.

Vasco Graça Moura, in Antologia dos Sessenta Anos

27 de abril de 2014

soneto do amor e da morte

quando eu morrer murmura esta canção 
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão. 

Ilustração de Jenny Meilihove
quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.

Vasco Graça Moura, in Antologia dos Sessenta Anos

Vasco Graça Moura

Ilustração de Bella Sinclaire


A poesia é a minha forma verbal de estar no mundo.


Vasco Graça Moura

25 de abril de 2014

Promessa

Ilustração de Amélie Fléchais


Na clara paisagem essencial e pobre


Viverei segundo a lei da liberdade


Segundo a lei da exacta eternidade.


Sophia de Mello Breyner Andresen, "No Tempo Dividido", in Obra Poética, Caminho, 2011, 2ª ed., p. 288

Eu falo da primeira liberdade

Ilustração de Oliver Flores


Eu falo da primeira liberdade

Do primeiro dia que era mar e luz

Dança, brisa, ramagens e segredos

E um primeiro amor morto tão cedo

Que em tudo que era vivo se encarnava.



Sophia de Mello Breyner Andresen, "No Tempo Dividido", in Obra Poética, Caminho, 2011, 2ª ed., p. 281

23 de abril de 2014

Das coisas que competem aos poetas

Ilustração de Helen Dardik


Nas terras onde os sinos andam pelas ruas

há horas surdas sós e sem cuidados

há mar condicionado ao possível verão

e vendem-se manhãs e mães por três ideias

Nas terras onde a música é o fogo de artifício

a camioneta curva a carga sob os plátanos

e à sombra dos lacrimejantes carros

o gato dorme a trepadeira sobe

o soba grita nunca ninguém sabe

a erva cresce e as crianças morrem

O mar aceita chão a mão do sol

Que plural deplorável o da magna agência mogno

E nas tílias há riscos dos vestidos de retintas raparigas

e o dente resistente número quarenta cheira a Pepsodent



Ruy Belo, in Todos os poemas, Assírio&Alvim, 2000, p. 155

A poesia revela o poeta

Ilustração de Laimonas Smergelis

Para mim, a poesia não é instrumental. Eu não levo um programa de ideias para expressar na poesia. A poesia é que me revela. O poema é que me mostra o que eu ando a dizer. E daí talvez uma intensidade. Porque o poema não se faz de ideias, não se faz só de palavras, faz-se de uma experiência e, nessa experiência, está o que somos.


Tolentino Mendonça, in "Estante", Fnac, nº 1, primavera 2014, p. 23

22 de abril de 2014

A poesia é uma atenção ao real

Ilustração de Anne Cresci

As musas visitam-nos e, quando elas nos visitam, têm um caráter de imponderabilidade, de coisa que não se pode adiar. Aí, a escrita e a poesia acontecem de uma forma mais intensa. Nos outros momentos, ou seja, na maior parte do tempo, a poesia é uma atenção ao real, é um pequeno caderno que trago no bolso, onde vou anotando imagens, palavras, frases, todos os dias, a todas as horas.


                                                      Tolentino Mendonça, in "Estante", Fnac, nº 1, primavera 2014, p. 22

21 de abril de 2014

A vida e a escrita

Ilustração de Laimonas Smergelis




A vida não nos chama de uma maneira só, chama-nos com vozes diferentes que são no fundo a única voz. A escrita é uma espécie de ponte, funciona como uma espécie de resíduo, um lugar, por onde tudo passa e algumas coisas ficam.


Tolentino Mendonça, in "Estante", Fnac, nº 1, primavera 2014, p. 20

20 de abril de 2014

Páscoa Feliz

Ilustração de Ercan Baysal 

Que os nossos olhos, feitos para olhar as estrelas, não morram a olhar para os nossos sapatos.

Tolentino Mendonça, in O tesouro escondido

Pudesse eu não ter laços nem limites



Ilustração de Laimonas Smergelis



Pudesse eu não ter laços nem limites

Ó vida de mil faces transbordantes

Pra poder responder aos teus convites

Suspensos na surpresa dos instantes.


Sophia de Mello Breyner Andresen,  "Poesia II" in Obra Poética, Caminho, 2011, 2ª ed., p.33




19 de abril de 2014

Jardim perdido

Ilustração de Laimonas Smergelis

Jardim em flor, jardim da impossessão, 
Transbordante de imagens mas informe, 

Em ti se dissolveu o mundo enorme, 
Carregado de amor e solidão. 

A verdura das árvores ardia, 
O vermelho das rosas transbordava, 
Alucinado cada ser subia 
Num tumulto em que tudo germinava. 

A luz trazia em si a agitação 
De paraísos, deuses e de infernos, 
E os instantes em ti eram eternos 
De possibilidade e suspensão.


Mas cada gesto em ti se quebrou, denso 
Dum gesto mais profundo em si contido, 
Pois trazias em ti sempre suspenso 
Outro jardim possível e perdido.



Sophia de Mello Breyner Andresen,  "Poesia II" in Obra Poética, Caminho, 2011, 2ª ed., p. 45

Vazio



Ilustração de Laimonas Smergelis

Só a forma e o vazio são universais; tudo o resto é pó e cinzas.



Rui Chafes "O perfume das buganvílias 22" , in Entre o céu e a terra, Documenta, 2012

18 de abril de 2014

Trevas

Ilustração de Laimonas Smergelis


O que foi antigamente manhã limpa
Sereno amor das coisas e da vida
É hoje busca desesperada busca
De um corpo cuja face me é oculta.


Sophia de Mello Breyner Andresen,  "Cristo Cigano" in Obra Poética, Caminho, 2011, 2ª ed., p. 374

Pôr do sol na Boa Nova

Ilustração de Laimonas Smergelis




Mar alma na tarde morta
que cortas dedos na luz
abro-me todo: sou porta
que só contigo transpus



Ruy Belo, in Todos os poemas, Assírio&Alvim, 2000, p. 70

Fé e poesia

Ilustração de Laimonas Smergelis


A fé alimenta-se muito daquela pobreza extrema, esse modo pobre que é a poesia. No fundo, o estar sempre a começar. Cada poema é um início. Como o estar sempre perante o branco, perante o silêncio, perante o não saber. E recomeçar. A fé alimenta-se muito disso, porque a fé não é o acumulado do ontem, mas é viver no aberto da esperança e do corpo, do nascer e do morrer, do amor e da fragilidade. E no fundo a escrita treina-me para a sucessão de começos que a vida é nas suas várias dimensões.


Tolentino Mendonça, in "Estante", Fnac, nº 1, primavera 2014, p. 23

15 de abril de 2014

Árvore, árvore...

Ilustração de Joan Louis

Árvore, árvore. Um dia serei árvore.
Com a maternal cumplicidade do verão.
Que pombos torcazes
anunciam.

Um dia abandonarei as mãos
ao barro ainda quente do silêncio,
subirei pelo céu,
às árvores são consentidas coisas assim.

Habitarei então o olhar nu,
fatigado do corpo, esse deserto
repetido nas águas,
enquanto a bruma é sobre as folhas

que pousa as mãos molhadas.
E o lume.


Eugénio de Andrade, in Com o sol em cada sílaba, Asa, 2002, 3ª ed., p. 21

13 de abril de 2014

Que trabalho

Ilustração de Luís Silva


Que trabalho exasperado, o da língua,
essa em que dizes com mão insegura
desvios, desacertos, desalinhos.

Eugénio de Andrade, in Pequeno formato

12 de abril de 2014

A visita do príncipe

Nunca sei o que me trazem as palavras, elas gostam tanto de me surpreender. 

Ilustração de Eszter Schall 
Hoje ao levantar da névoa trouxeram-me a casa sobre o rio, o terraço escassamente iluminado por um lampião que balançava ao vento, o pequeno sapo que todas as noites, rente ao muro, se ia aproximando , depositário de tudo o que nesse tempo em mim se confundia com a ternura. Pequeno príncipe da vadiagem, por ali se quedava sem outro fito que não fosse o de receber alguma carícia, so depois regressando por entre a humidade das pedras aos pântanos da sombra, a noite inteira nos olhos desmedidos. 

Eugénio de Andrade, in Com o sol em cada sílaba, Asa, 2002, 3ª ed., p. 17

10 de abril de 2014

Amor é fogo que arde sem se ver

Ilustração de Alvaro Arteaga

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

                               
                                                     Camões

6 de abril de 2014

Como o rumor


Ilustração de Marie Cardouat 

Como o rumor do mar dentro de um búzio
O divino sussurra no universo
Algo emerge: primordial objecto


Sophia de Mello Breyner Andresen, O nome das coisas in Obra Poética, Caminho, 2011, 2ª ed., p. 609

5 de abril de 2014

Musa

Aqui me sentei quieta
Com as mãos sobre os joelhos
Quieta muda secreta
Passiva como os espelhos




Ilustração de Maria Jose Olavarria Madariaga













Musa ensina-me o canto
Imanente e latente
Eu quero ouvir devagar
O teu súbito falar
Que me foge de repente.


Sophia de Mello Breyner Andresen, Dual in Obra Poética, Caminho, 2011, 2ª ed., p. 571

3 de abril de 2014

Da mais alta janela da minha casa


Gustav Klimt
Da mais alta janela da minha casa 
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a humanidade. 


E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto. 

Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo. 

Quem sabe quem os terá?
Quem sabe a que mãos irão? 

Ilustração de Christian Asuh

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos. 
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste. 

Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua. 

Passo e fico, como o Universo.


Alberto Caeiro, in Fernando Pessoa dito por Sinde Filipe, Dinalivro, 2010, 3ª ed., pp. 86-87

1 de abril de 2014

Vinicius de Moraes

Soneto da fidelidade

Ilustração de Carlotta Castelnovi


De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Qem sabe a solidão, fim de quem ama

Que eu possa dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.




Vinicius de Moraes