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28 de fevereiro de 2014

Há uma luz

Ilustração de Silvano Braido

Há uma luz

sobre as luzes

onde o olhar escapa a todas as luzes


Tolentino Mendonça, in A papoila e o monge, Assírio&Alvim, 2013, p. 110

27 de fevereiro de 2014

Estás sempre à minha frente

Ilustração de Dilka Bear

Estás sempre à minha frente   

quando penso que não

quando penso que sim


Tolentino Mendonça, in A papoila e o mongeAssírio&Alvim, 2013, p. 93

26 de fevereiro de 2014

Vazio

Ilustração de Victoria Kirdy


Quando se extinguiu

o vermelho da papoila

o jardim ficou vazio


Tolentino Mendonça, in 

A papoila e o monge

Assírio&Alvim, 2013, p. 105



25 de fevereiro de 2014

Ao longe

Ilustração de Silvano Braido
Quando ao longe me voltei

a minha casa 

era um ponto branco


Tolentino Mendonça, in A papoila e o monge, Assírio&Alvim, 2013, p. 103

24 de fevereiro de 2014

Mesmo que faça frio...

Ilustração de Silvano Braido 


Mesmo que faça frio

não aproximes do fogo

um coração de neve



Tolentino Mendonça, in A papoila e o monge, Assírio&Alvim, 2013, p. 89

22 de fevereiro de 2014

Azul para voar mais alto...


Paris à noite, de Vieira da Silva


Eu deixo aos meus amigos

Um azul cerúleo para voar alto.

Um azul cobalto para a felicidade.

Um azul ultramarino para estimular o espírito.

Vieira da Silva 

21 de fevereiro de 2014

Cântico negro

Ilustração de Luis Romero

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...


A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.



Ilustração de Huebucket

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...



Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...



Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.



Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...



Ilustração de Ford Smith


Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...



Ilustração de Ford Smith


Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.


Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!



José Régio 

18 de fevereiro de 2014

Eva

Ilustração de Lee Misook


Quando Eva andava nua pelo paraíso,

disfarçava o tédio à sombra das árvores, colhendo 

as flores, cheirando o seu perfume,

e pensando como seria bom ter um céu

para espreitar.


Um dia, uma dessas flores transformou-se em

fruto; e Eva levou-o à boca, trincou-o, provou

a sua polpa. Por um estranho efeito

de causa e consequência, o sabor da maçã

obrigou Eva a cobrir a sua nudez

com folhas e flores, que passaram

a ser uma metáfora do corpo

que escondem.


Então, o pecado tornou-se uma simples

figura de retórica, e o sexo um exercício

de interpretação.


Nuno Júdice, in A Matéria do Poema, Dom Quixote,2008, 1ª ed., p. 42

17 de fevereiro de 2014

Para escrever o poema

Ilustração de Eszter Schall

O poeta quer escrever sobre um pássaro:

e o pássaro foge-lhe do verso.


O poeta quer escrever sobre a maçã:

e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou.


O poeta quer escrever sobre uma flor:

e a flor murcha no jarro da estrofe.


Ilustração de Emilie Vast


Então, o poeta faz uma gaiola de palavras

para o pássaro não fugir.


Então, o poeta chama pela serpente

para que ela convença Eva a morder a maçã.




Ilustração de Emilie Vast





Então, o poeta põe água na estrofe

para que a flor não murche.





Mas um pássaro não canta

quando o fecham na gaiola.



A serpente não sai da terra

porque Eva tem medo de serpentes.


E a água que devia manter viva a flor

escorre por entre os versos.


E quando o poeta pousou a caneta,

o pássaro começou a voar,

Eva correu por entre as macieiras

e todas as flores nasceram da terra.


Ilustração de Mary Alayne Thomas
Ilustração de Lucy Campbell
















O poeta voltou a pegar na caneta,

escreveu o que tinha visto,

e o poema ficou feito.


Nuno Júdice, in A Matéria do Poema, Dom Quixote,2008, 1ª ed., pp. 52-53

15 de fevereiro de 2014

Saudade da prosa

Poesia, saudade da prosa;
Ilustração de Michael Woloschinow
escrevia "tu", escrevia "rosa"
mas nada me pertencia,

nem o mundo lá fora
nem a memória,
o que ignorava ou o que sabia.     

E se regressava
pelo mesmo caminho
não encontrava

senão palavras
e lugares vazios:
símbolos, metáforas,

o rio não era o rio
nem corria e a própria morte
era um problema de estilo.

Onde é que eu já lera
o que sentia, até a 
minha alheia melancolia?

Manuel António Pina, in Poesia, Saudade da Prosa - uma antologia pessoal
Assírio & Alvim, 2012, 2ª ed., p. 58

14 de fevereiro de 2014

O meu desejo na primavera

Ilustração de Emilie Vast


O meu desejo na primavera:

que mesmo as flores selvagens

venham florir à minha porta


Tolentino Mendonça, in A papoila e o monge, Assírio&Alvim, 2013, p. 95


13 de fevereiro de 2014

O essencial é invisível para os olhos


Ilustração de Ann Ernandez


- Adeus...
- Adeus - disse a raposa. - Vou contar-te o tal segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos...

- O essencial é invisível para os olhos - repetiu o principezinho, para nunca mais se esquecer.

Saint-Exupéry, in O Principezinho, Editora Caravela, 1987, 12ª ed., p. 74

12 de fevereiro de 2014

Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos

Ilustração de Carlotta Castelnovi

Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.

No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida

foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama

e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos;
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.


       Maria do Rosário Pedreira, in Poesia Reunida, Quetzal poesia, 2012, 1ª ed., p.97

10 de fevereiro de 2014

Tu és a esperança, a madrugada

Ilustração de Agnes Keszeg




Tu és a esperança, a madrugada.
Nasceste nas tardes de setembro,
quando a luz é perfeita e mais dourada,
e há uma fonte crescendo no silêncio
da boca mais sombria e mais fechada.

Para ti criei palavras sem sentido,
inventei brumas, lagos densos,
e deixei no ar braços suspensos
ao encontro da luz que anda contigo.

Tu és a esperança onde deponho
meus versos que não podem ser mais nada.
Esperança minha, onde meus olhos bebem,
fundo, como quem bebe a madrugada.

Eugénio de Andrade, in As mãos e os frutos

9 de fevereiro de 2014

Nada temas...

Ilustração de Mihai Criste

(...)

a morte está deitada sob o lençol da terra onde nasceste
e pode levantar-se como um pássaro assim que 
adormeceres. Mas nada temas (...)


Maria do Rosário Pedreira, in Poesia Reunida, Quetzal poesia, 2012, 1ª ed., p.121

7 de fevereiro de 2014

Ser poeta


Ilustração de Lee Misook



Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Áquem e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!




Florbela Espanca, in Charneca em Flor

6 de fevereiro de 2014

Há palavras que nos beijam

Ilustração de Marina Anaya


Há palavras que nos beijam 
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill, in No Reino da Dinamarca

4 de fevereiro de 2014

Para atravessar contigo o deserto do mundo

Ilustração de Satoshi Ota


Para atravessar contigo o deserto do mundo 
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Livro Sexto

3 de fevereiro de 2014

Falar de poesia

Ilustração de Satoshi Ota



Antes de tudo, não falar. O poema tem todas as palavras necessárias para que não seja preciso dizer mais nada a partir dele.

(...)

Um poema, quando o é, diz tudo o que há para saber sobre si.

Nuno Júdice

2 de fevereiro de 2014

Anorexia da leitura?

Vieira da Silva


Ler é beber e comer. O espírito que não lê emagrece como um corpo que não come.


Victor Hugo