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10 de junho de 2013

O sulco

Desde que lhe morreu o marido a Bice viu-se reduzida a falar com uma galinha.Dá-lhe de comer numa travessa sêmeas em papa e fica sentada a fazer-lhe companhia no degrau da porta de casa.

Depois a galinha vai para fora e de vez em quando pára na praça ou onde bem lhe apetece. Mais tarde a Bice vai perguntar aos rapazes se a viram passar. Todas as manhãs entram juntas na igreja onde estava pintada na parede a Nossa Senhora sentada que em mil novecentos e catorze chorara porque estava para rebentar a primeira guerra mundial. Então todas as mulheres de Rimini e Ravenna vieram rezar pelos filhos e pelos maridos que estavam em perigo.

Ilustração de Lookarna
Depois acabou a guerra e nunca mais lhe ligaram. A água gotejava do tecto e catrapás, a neve deitou tudo abaixo.

Assim a igreja caiu no abandono e a pintura pouco a pouco foi-se apagando da parede e transformando em pó. Só ficou o sulco no rego que fizeram as lágrimas de Nossa Senhora quando chorou.

A Bice põe-se de joelhos diante daquela risca e a galinha fica acocorada ao pé dela.

Tonino Guerra, in O livro das igrejas abandonadas