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29 de setembro de 2013

Animalescos

A lógica que serve a loucura e o despotismo / manipulação das massas subjaz à maioria dos episódios de Animalescos, de Gonçalo M. Tavares.



(...) trata-se de um novo programa do governo que quer não apenas médicos físicos a
Ilustrações de  Alyona Krutogolova
invadir as pequenas aldeias e os pobres, não apenas operações cirúrgicas e medicamentos para a tremura das mãos, quer também  - o bom 
do governo - ordenar a cabeça desorientada dos desgraçados e, por isso, manda psicanalistas a sítios inacessíveis às máquinas que só sabem andar em linha recta (...) a esses sítios inteligentes e sítios parvos, mas a esses sítios inteligentes só os cavalos ou os burros podem chegar (...)

Gonçalo M. Tavares, in Animalescos

Relógio d' Água, 2013, p. 121

28 de setembro de 2013

Eleições

Antonio José Bolívar sabia ler, mas não escrever.
O mais que conseguia era garatujar o nome quando tinha que assinar qualquer papel oficial, por exemplo, na época das eleições, mas, como tais acontecimentos ocorriam muito esporadicamente, já quase se tinha esquecido.
Lia lentamente, juntando as sílabas, murmurando-as a meia voz como se as saboreasse, e, quando tinha a palavra inteira dominada, repetia-a de uma só vez. Depois fazia o mesmo com a frase completa, e dessa maneira se apropriava dos sentimentos e ideias plasmados nas páginas.
Quando havia uma passagem que lhe agradava especialmente, repetia-a muitas vezes,  todas as que achasse necessárias para descobrir como a linguagem humana também podia ser bela.

Ilustração de Sophie Blackal

Lia com o auxílio de uma lupa, o segundo dos seus pertences mais queridos. O primeiro era a dentadura postiça.

                                Luis Sepúlveda, in O velho que lia romances de amor, Asa, 2000, 17ª ed., p.28

27 de setembro de 2013

Compreender um escritor


Ilustração de Deborah Dewit 


Só mostro que compreendi um escritor quando puder actuar dentro do seu espírito, quando o conseguir traduzir e alterar de diversas maneiras, sem reduzir a sua individualidade.


in Fragmentos de Novalis (seleção, tradução e desenhos de Rui Chafes), 

Assírio & Alvim, 2000, 2ª ed., p. 31

26 de setembro de 2013

Artista

Ilustração de Vladimir Kryloff

Apenas um artista é capaz de adivinhar o sentido da vida.


in Fragmentos de Novalis (seleção, tradução e desenhos de Rui Chafes), 

Assírio & Alvim, 2000, 2ª ed., p. 49

25 de setembro de 2013

A infinita potencialidade da linguagem

O verbo é o senhor absoluto: as forças condutoras do poema já não obedecem às relações gramaticais, mas condensam em si as múltiplas virtualidades significativas. 





Ilustrações de Vesa Sammalisto

A palavra desvincula-se assim de todo o preciso significado para passar a ser apenas a expressão do silêncio e do nada, uma pura vibração. Mas mesmo aqui a significação não foi anulada. O que desapareceu foi a univocidade significativa que passou a ser substituída pela "infinita potencialidade da linguagem".

António Ramos Rosa, in Poesia, Liberdade Livre, Liv. Moraes Editores, 1962

24 de setembro de 2013

Poesia e humanização







Ilustrações de Lauren Mills



A poesia é para o poeta e para quantos o acompanham o modo mais imediato de se humanizar, de ser imaginariamente e realmente esse outro que somos e não somos e para o qual, homens e poetas, tendemos todos os nossos esforços.




António Ramos Rosa, in Poesia, Liberdade Livre, Liv. Moraes Editores, 1962





23 de setembro de 2013

Perto do acordar

Ilustração de Ina Doncheva



Estamos perto do acordar, quando sonhamos que sonhamos.




in Fragmentos de Novalis (seleção, tradução e desenhos de Rui Chafes), Assírio & Alvim, 2000, 2ªed., p.29

22 de setembro de 2013

Dormir bem


Ilustração de Rose Wong

Faça do sono uma coisa boa da sua vida. Não o maltrate! 

Dormir bem é uma bênção.



                          Teresa Paiva, in Bom sono, boa vida, Oficina do Livro, 2008, 2ª ed. p. 40

21 de setembro de 2013

Bom sono, boa vida

Ilustração de Alberto Ruggieri


Se dormir bem, viverá melhor.

Teresa Paiva, in Bom sono, boa vida, Oficina do Livro, 2008, 2ª ed. p. 73

20 de setembro de 2013

Sentido para um sentido

Ilustração de Vladimir Kryloff



Qualquer sentido interior é um sentido para um sentido.





in Fragmentos de Novalis (seleção, tradução e desenhos de Rui Chafes), Assírio & Alvim, 2000, 2ªed., p.133

19 de setembro de 2013

Os novos Maias, por José Luís Peixoto

Em Os novos Maias, editado pelo jornal Expresso (1ª parte), o prefácio,  intitulado "Profecias d' Os Maias", é uma clara e bastante útil análise das personagens dos episódios da vida romântica. Espelha de modo fidedigno os temas e a crítica social da obra magistral queirosiana, o que a torna tão atual. É um bom retrato das personagens-tipo, do seu significado e da sua intemporalidade.


Ilustração de Saja, Sabine Jeannot
O texto de José Luís Peixoto, que retomou o romance desde o último episódio, com Carlos da Maia e João da Ega a correrem para apanharem "o americano", revela que o autor conhece bem o universo da obra que o inspirou e a relação entre estas duas personagens. As descrições são vivas, polvilhadas de humor, e Carlos, Ega e Dâmaso Salcede readquiriram a sua densidade psicológica. Com mais ou menos surpresa, a diegese prossegue, sob a curiosidade do leitor, até que este tropeça em anacronismos. Em "Apesar da pressa, não caminharam demasiado rápido",  a substituição do advérbio "depressa" pelo adjetivo "rápido" denuncia a linguagem do século XXI (ou mesmo de finais do século XX). 

Ilustração de David de Ramon

Porém, o maior sobressalto do leitor surge quando o silêncio de 1900 é "interrompido pela estridência de uma mensagem de telemóvel". Em 1900? Quando o propósito da narrativa é fixá-la entre 1887 e 1910, como é anunciado na "Nota prévia" da edição do jornal Expresso? É de se lhe tirar o chapéu, José Luís Peixoto!





18 de setembro de 2013

O velho que lia romances de amor (2)


Ilustração de André Letria

O velho recebeu os livros, examinou as capas e declarou que gostava. 


Luis Sepúlveda, in O velho que lia romances de amor, Asa, 2000, 17ª ed., p. 26

17 de setembro de 2013

O velho que lia romances de amor (1)





- Olha, com toda a confusão do morto já quase me esquecia. Trouxe-te dois livros.

Os olhos do velho iluminaram-se.

- De amor?

O dentista fez que sim.

Antonio José Bolívar Proaño lia romances de amor, e em cada uma das suas viagens o dentista abastecia-o de leitura.

- São tristes? - perguntava o velho.

- De chorar rios de lágrimas - garantia o dentista.

- Com pessoas que se amam mesmo?
 
- Como ninguém nunca amou.

- Sofrem muito?

- Eu quase não consegui suportar - respondia o dentista.

Mas o doutor Rubicundo Loachamín não lia os romances.

Quando o velho Lhe pediu o favor de lhe trazer leitura, indicando muito claramente as suas preferências - sofrimentos, amores infelizes e desfechos felizes -, o dentista sentiu que estava perante um encargo difícil de cumprir.

Luis Sepúlveda, in O velho que lia romances de amor, Asa, 2000, 17ª ed., pp. 24-25 

16 de setembro de 2013

Mar...


Ilustração de Monica Armiño


Agora o mar lambia a areia mesmo em frente da esplanada.


Lídia Jorge, "Espuma da tarde", in Marido e outros contos, D. Quixote, 2008, 5ª ed., p.65

15 de setembro de 2013

Zuzete na retrete

Autor desconhecido



Mas ao almoço que se dizia jantar é que era. Zuzete mostrava ter pressa e sentava-se na retrete como se andasse com o horário das funções invertido, e só de lá saía quando já se faziam rodas e se produzia canto. O que fará lá dentro a Zuzete? 






Autor desconhecido

Até que um dia alguém se pôs às cavalitas de alguém e descobriu que Zuzete tasquinhava* o seu pão sentada na tábua daquele pivete. O alarido da descoberta foi tão grande que Zuzete saiu de lá trocando as pernas, sem saber para onde olhar, e para que a cena fosse completa, atirou-se às paredes do pátio com os punhos fechados. Retirem-se que a gaja até espuma da boca! Mas agora Zuzete ia e vnha, via-se que punha uma mesa festiva arrancando panos dobrados do fundo das gavetas. Só me ensombra, neste momento, a lembrança das minhas tias. Sandro deve estar a chegar. Ora conta lá como conheceste o Sandro.


Lídia Jorge, "Testemunha", in Marido e outros contos, D. Quixote, 2008, 5ª ed., p. 111


* comia com pouco apetite

14 de setembro de 2013

O conto do nadador

Ilustração de Alexandra Gallant



Então aguardaram pelo dia seguinte. Era um final de Agosto quente como não havia memória de semelhante. Os veraneantes costumavam sair de noite das exíguas casas dos pescadores e deitar-se ao relento, olhando as estrelas. Contudo, durante certa madrugada, muitos dos hóspedes tinham sido obrigados a recolher aos quartos onde sempre cheirava a polvo e a peixe seco. 












Aquela noite havia trazido mudança. O vento tinha passado a sudoeste e a maré alterosa havia batido com força no pequeno bar da praia. O dono do Hotel Paraíso lembra-se. O banho do meio-dia das raparigas tinha envolvido gritos altos, braços no ar como nunca antes. Os mailots ameaçavam rasgar-se. A areia havia-se introduzido por todas as costuras. A que escrevia cartas tinha saído de água com pedras entre os seios. 

Ilustração de Rebecca Kinkead

O mar permanecia quente, e a areia, escurecida pelo sol, abria-se em línguas por onde escorria água em regatos que alcançavam as ondas. De repente, calor e vento, unidos, faziam-se agrestes. Deveriam as raparigas, de tarde, passear naquele areal sem fim, onde costumava encontrar-se o homem do toalhão encarnado?


Lídia Jorge, "O conto do nadador", in Marido e outros contos, D. Quixote, 2008, 5ª ed., p. 134 


13 de setembro de 2013

Aventurar-se


Ilustração de Rebecca Kinkead

É preciso coragem para me aventurar numa tentativa de concretização do que sinto. É como se eu tivesse uma moeda e não soubesse em que país ela vale.


Clarice Lispector, in A paixão segundo G.H., Relógio d'Água, 2000, p.17

12 de setembro de 2013

A espuma das ondas



Ilustração de Katya Dudnik

A espuma das ondas, batendo ora mais à direita ora mais à esquerda, entornava-se como se derramada pela borda de gigantesca bacia, e era aí, na espuma, que ele estava, correndo de um lado para o outro, indo e vindo, como se tivesse traçado um limite na terra que só ele via. O que pensar de tudo quanto estava a suceder?


Lídia Jorge, "Espuma da tarde", in Marido e outros contos, D. Quixote, 2008, 5ª ed., pp.69-70

10 de setembro de 2013

Violência familiar (3)

Ilustração de Dragonfly 


Foram tempos do Minotauro, perdida no seu labirinto.

Hora de negrume e correntezas de desespero.



Maria Teresa Horta, "Alice", in Isto não é um conto - 

Histórias de violência baseadas na vida de seis mulheres 

Violência familiar (2)

Ilustração de Shiori Matsumoto

Quem é violento não diz nem confessa. Quem é vítima tem medo de dizer. Quem é agredido tem vergonha de revelar. Quem vê ou sabe não tem coragem para denunciar. Quem ouve falar acha muitas vezes normal. Quem regista não presta atenção. Quem investiga arranja quase sempre desculpas. Quem julga tem pretextos e escapatórias. Quem estuda dissolve na sociedade as culpas individuais.


António Barreto, "Violência familiar" in Isto não é um conto - 

Histórias de violência baseadas na vida de seis mulheres, prefácio

9 de setembro de 2013

Violência familiar (1)

Ilustração de Deborah Dewit


Os dicionários e as enciclopédias não ajudam muito a compreender. A não ser que se fizesse um dicionário de preconceitos e ideias imbecis ou um vocabulário de termos sórdidos do machismo.


António Barreto, in Isto não é um conto - Histórias de violência baseadas na vida de seis mulheres

8 de setembro de 2013

Não se ouve o sofrimento

M., com a sua idade de criança, passa pelas janelas, ouve os vizinhos e ouve as vidas todas iguais. Com os mesmos barulhos. Mas não se ouve o sofrimento, pois só se ouve o nosso. É uma coisa que nos pertence, só a nós, como o cartão de cidadão, como o umbigo, como as linhas das mãos e o modo como deformamos os sapatos a andar.

Ilustração de Linda Apple
O sofrimento é um sapato deformado.

Afonso Cruz, "Quando as joaninhas de plástico deixam de falar", in Isto não é um conto - Histórias de violência baseadas na vida de seis mulheres

7 de setembro de 2013

Silêncio

Ilustração de Rebecca Kinkead

Nenhum ruído e no entanto eu bem sentia uma ressonância enfática, que era a do silêncio roçando o silêncio.
 
Clarice Lispector, in A paixão segundo G.H., Relógio d'Água, 2000, p.39

6 de setembro de 2013

Envelhecimento

Raquel Díaz Reguera


Então, antes de entender, meu coração embranqueceu como cabelos embranquecem.
 
 Clarice Lispector, in A paixão segundo G.H., Relógio d'Água, 2000, p. 37

4 de setembro de 2013

Entrega confiante

Ilustração de Rebecca Kinkead



Desamparada, eu te entrego tudo - para que faças disso uma coisa alegre.


Clarice Lispector, in
A paixão segundo G.H.,
Relógio d'Água, 2000, p.15

2 de setembro de 2013

A melhor forma

Pinzellades al món, autor desconhecido

Sempre gostei de arrumar. Suponho que esta seja a minha única vocação verdadeira. Ordenando as coisas, eu crio e entendo ao mesmo tempo.
 
(...)
 
...não pertencesse eu por dinheiro e por cultura à classe a que pertenço, e teria normalmente tido o emprego de arrumadeira numa grande casa de ricos, onde há muito o que arrumar. Arrumar é achar a melhor forma.
 
 
Clarice Lispector, in A paixão segundo G.H., Relógio d'Água, 2000, p.27

1 de setembro de 2013

Medo de ser


Ontem, no entanto, perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação. Como é que se explica que o meu maior medo seja exactamente em relação: a ser? e no entanto não há outro caminho. Como se explica que o meu maior medo seja exactamente o de ir vivendo o que for sendo?
 
 
Ilustração de Rebecca Kinkead
   

Como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra - como se antes eu tivesse sabido o que era! Por que é que ver é uma tal desorganização?

 
Clarice Lispector, in A paixão segundo G.H., Relógio d'Água, 2000, p.10