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1 de dezembro de 2012

Uma história que começa pelo fim

Ilustração de Will Bulas
Eram uma vez um príncipe e uma princesa que se casaram e foram felizes para sempre. 

Mas “para sempre” é muito tempo e, com o passar dos anos, a felicidade do príncipe e da princesa começou a ter um sabor estranho e a tornar-se, como hei-de dizer?, um pouco aborrecida.

- Que saudades eu tenho de quando era guardadora de patos!, dizia a princesa.

- E eu que saudades tenho de quando era sapo, e esperava que tu chegasses e me beijasses para quebrar o feitiço!, dizia melancolicamente o príncipe.


(O príncipe e a princesa estavam já a ficar velhos e  confundiam frequentemente as coisas, misturando com a sua história as histórias de outros príncipes e outras princesas de que tinham ouvido falar).
Ilustração de Marianna Kalacheva
Um dia, passeando nos jardins do palácio, de mãos dadas, como sempre, concluíram que eram felizes há tanto tempo que já nem sabiam bem o que era a felicidade, e que, se ao menos se lembrassem de alguma coisa infeliz, talvez pudessem de novo aperceber-se de como eram felizes.

Chamaram então os cortesãos para que eles lhes falassem de coisas infelizes e tristes. Mas os cortesãos, como já tinha passado muito tempo, também já não se lembravam. A única coisa de que um deles, depois de um grande esforço, foi capaz de lembrar-se foi de que lhe parecia que estar triste era triste. 


Mas quando lhe perguntaram o que era estar triste ficou longos minutos em silêncio, a puxar pelas recordações, e não conseguiu lembrar-se de mais nada (a não ser, lembrou-se de repente, de que deixara as chaves de casa no bolso das calças que tinha mandado para a lavandaria!).
 - O que eu dava por um pouco, um pouco só, de tristeza! – dizia o príncipe abanando a cabeça.
- Assim nem sabemos se somos felizes ou não. Devemos ser, mas não temos a certeza…- acrescentava a princesa.


Ilustração de Nadezhda Illarionova
Pediram ajuda à Fada Madrinha, que lhes fazia todas as vontades, mas a Fada Madrinha era uma Fada Boa e não podia fazer maldades nem provocar tristeza, e por isso não lhes pôde valer.
Passou muito, muito tempo, até que um dia, o Bobo, que tinha frequentemente ideias malucas, teve uma ideia maluca: e se tudo aquilo fosse uma grande maldade da Bruxa Má? Se ela tivesse rodeado o príncipe e a princesa de felicidade por todos os lados e os tivesse aprisionado? Se todos, até ele, que também era (julgava que era, mas também já não tinha a certeza…) feliz, fossem afinal prisioneiros da Bruxa Má? 
Era uma ideia maluca, e o Bobo não se atreveu a falar a ninguém. Mas, a partir desse dia, passou a procurar desesperadamente uma saída que desse para Qualquer-Sítio, por onde pudesse passar para o outro lado da muralha da felicidade. Até que, numa certa tarde, decidiu meter-se por um buraco que lhe pareceu apropriado para ir dar a Qualquer-Sítio.
Porém, ao longo de tantos e tantos anos de felicidade, o Bobo tinha engordado muito e, mal se enfiou no buraco, ficou preso pela barriga, sem poder continuar nem voltar para trás.

O príncipe e a princesa deram pela falta do Bobo e ficaram muito aflitos, porque eram muito, muito amigos dele. Ajudados pelos cortesãos, procuraram-no por toda a parte. Mas chegou a noite e o Bobo não apareceu. 
Ilustração de Maria Pace-Wynters
Então, nessa noite, ao jantar, a princesa, olhando a cadeira vazia do Bobo à mesa, sentiu uma impressão estranha: uma espécie de não sabia bem o quê, não sabia bem onde, como se o seu coração, de repente, se tivesse tornado mais pequeno. 
E o príncipe pegou-lhe na mão e sussurrou:
- Também eu. Será que… - a sua voz estremeceu – será que estamos tristes?!
E então, de repente, perceberam:
- Estamos tristes, estamos tristes!, gritaram os dois, saltando alvoroçados nos cadeirões.
Ficaram contentíssimos por estarem tristes. Mas, ao mesmo tempo, ficaram tristes. Porque continuavam sem saber o que teria acontecido ao Bobo. 
- Que grande infelicidade, disse a princesa voltando a sentar-se. – E se o Bobo morreu? – E, pela primeira vez desde há muitos, muitos anos, dos seus olhos correram de novo, ligeirinhas, as lágrimas. Estavam tão desabitadas, as lágrimas, que, primeiro, assomaram timidamente aos cantos dos olhos da princesa, espreitando, hesitantes, e só depois ganharam coragem e se decidiram a correr-lhe, duas a duas, pelas faces.
- São salgadas, disse, surpreendida, a princesa.
- As saladas?..., perguntou o príncipe sem compreender.
- Não, as lágrimas…

Nas semanas seguintes, como o Bobo continuava sem aparecer, o príncipe e a princesa passaram terríveis dias de tristeza e aflição.
Até que, como esteve muito tempo sem comer, metido no buraco, o Bobo emagreceu. E tanto emagreceu que, finalmente, conseguiu safar-se, e voltou, cheio de fome, ao Palácio, onde foi recebido com grandes festas.

 
Ilustração de Marianna Kalacheva
E voltaram todos a viver felizes para sempre.
                                                                                                Manuel António Pina, in Histórias que me contaste tu

O valor do vento

Ilustração de Alain Bailhache
 
Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento
O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras e
só entram nos meus versos as coisas de que gosto
O vento das árvores o vento dos cabelos
o vento do inverno o vento do verão
O vento é o melhor veículo que conheço
Só ele traz o perfume das flores só ele traz
a música que jaz à beira-mar em agosto
Mas só hoje soube o verdadeiro valor do vento
O vento actualmente vale oitenta escudos
Partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto

Ruy Belo, in Todos os Poemas

Sobre o mar

Ilustração de Lirios Jordá





Sobre o mar
a mão escreve. Como se escrever  
servisse para diminuir o erro.
Escreve
num país atravessado a prumo
pelo delírio.
País despossuído. O voo rasteiro
e curto. De muro em muro.

Eugénio de Andrade, in Pequeno formato