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13 de maio de 2012

O álbum da tia Dulce


Ilustração de Alexander Mikhnushev
Subitamente, no meio da confusão da livralhada, descubro o álbum da tia Dulce. Estou cansado e sento-me. É um álbum velho, pesado como o tempo. A capa arredonda-se em almofada, com uma dama antiga, em tons verdes e brancos, segurando no regaço um leque fechado. (…) Retrato de grupo há só um. Mas as figuras não estão centradas para um ponto único, não nos olham nem se olham (…). Cerro os olhos e sei de novo que toda esta gente morreu. Mas o que mais me perturba é pensar que o rasto dessa gente está suspenso de mim. Porque eu tenho ainda uma pequena notícia da sua vida, o eco apagado do que foi a massa complexa do seu ser e sentir. Tia Dulce contou-me. (…) Mas de muitos retratos já nada sei. São esses que eu fito com mais angústia. Têm olhos espantados ou risonhos ou sérios. Que medos, que sonhos, que virtudes lhes inventaram a vida em eternidade? Mas vós estais mortos e ninguém vos julga e ninguém vos ouve. Que sei, porém, de vós outros, meus amigos? (…) Frágeis fios destas imagens amarelecidas, convergindo para mim, para a minha memória cansada, presos do futuro por uma breve referência, uma nota, uma etiqueta. Terei um filho talvez. Eu lhe contarei o que sei de vós. Mas ele o esquecerá talvez, ou o filho do meu filho, ou o filho do filho do meu filho. Então aparecereis num recanto do sótão, absurdos, incríveis, inquietantes (…). Mas agora ainda estais vivos, ainda alguém, eu, aqui, silencioso nesta casa solitária, vos liga à vida que freme para lá destes muros na Primavera anunciada, nas primeiras andorinhas que me buscam o beiral, na planície aberta de esperança. Sede vivos neste instante infinitesimal em que vos fito e vos sei um nada do vosso convulso e rico e inverosímil milagre.

Vergílio Ferreira, Aparição, Ed. Bertrand, Cap. XVII