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30 de junho de 2012

Lágrima


Ilustração de Milos Koptak
 

 Dos olhos me cais,
 redonda formosura. 
Quase fruto ou lua,
cais desamparada.
Regressas à água
mais pura do dia,
obscuro alimento 
de altas açucenas.
Breve arquitectura
da melancolia.
Lágrima, apenas.

Eugénio de Andrade, in Coração do dia

Quando junho voltar

Ilustração de Anna Wadham


A quem deste a mão, confiaste
a sua seda? O ardor
do verão caiu ao rio,
a tão amada voz perdeu
o seu rebanho.
Quando junho voltar,
quem saberá onde fará a casa?



Eugénio de Andrade, in O outro nome da terra

29 de junho de 2012

Lusofonia

rapariga: s.f., fem. de rapaz; mulher nova; moça; menina; (Brasil), meretriz.
Ilustração de Lucie Crovatto


Escrevo um poema sobre a rapariga que está sentada

no café, em frente da chávena do café, enquanto
alisa os cabelos com a mão. Mas não posso escrever este
poema sobre essa rapariga porque, no brasil, a palavra
rapariga não quer dizer o que ela diz em portugal. Então,
terei de escrever a mulher nova do café, a jovem do café,
a menina do café, para que a reputação da pobre rapariga
que alisa os cabelos com a mão, num café de lisboa, não
fique estragada para sempre quando este poema atravessar
o atlântico para desembarcar no rio de janeiro. E isto tudo
sem pensar em áfrica, porque aí lá terei
de escrever sobre a moça do café, para
evitar o tom demasiado continental da rapariga, que é
uma palavra que já me está a pôr com dores
de cabeça até porque, no fundo, a única coisa que eu queria
era escrever um poema sobre a rapariga
do café. A solução, então, e mudar de café, e limitar-me a
escrever um poema sobre aquele café onde nenhuma rapariga se
pode sentar à mesa porque só servem cafés ao balcão.
 


Nuno Júdice, in A Matéria do Poema

28 de junho de 2012

Cena bíblica

Ilustração de Carmen Arvizu
No meio da praia deserta, uma baleia morta. O céu
estava cinzento. As ondas rebentavam em brancas
explosões. Dois ou três pescadores, e outras tantas
crianças, andavam à volta da baleia, tapando o nariz.
Nada a fazer por ela. Mas o vento levava o cheiro
para longe, e ao aproximar-me perguntava-me se
não seria de a abrir e ver se, por acaso, não haveria
um jonas no seu ventre. O pescador mais velho
afastou-me: «E se ali estivesse alguém, o que
teria para nos dizer?» Não soube o que responder:
que mensagens de um deus antiquíssimo? Que
recordações de um tempo de guerras e desastres?
Que memórias da mulher amada, de quem não
restam ossos nem imagens? No dia seguinte,
com um tractor, a baleia foi enterrada bem fundo,
numa cova ao seu tamanho. Dizem que nenhuma
planta cresceu ali, desde então. E ainda hoje me
arrependo de não ter ouvido o apelo de jonas,

e de não o ter tirado do ventre da baleia.


Nuno Júdice, in Fórmulas de uma luz inexplicável

27 de junho de 2012

A viagem

Ilustração de Anuska Allepuz

Ilustração de Janes Browne
No conto "A viagem", de Sophia, um homem e uma mulher perdem-se. 
Percorrem uma estrada e a estrada desaparece. Encontram um cavador, que lhes indica uma fonte e, ao voltarem para trás para recolherem informações sobre a estrada, também o cavador tinha desaparecido. 
 
Caminham, caminham e tudo vai desaparecendo à sua volta, até mesmo as saborosas amoras que haviam colhido e guardado no lenço da mulher.
 
A verdade é que, homem e mulher, caminham juntos, de mãos dadas; ele protege-a, tranquiliza-a, quando confessa as suas fraquezas: a fome e o medo, muito medo.

     
Até que... o homem cai no abismo. E a mulher procura-o. "Mas não havia passagem. (...) Compreendia que agora era ela que ia cair no abismo. "

Ilustração de Daniela Giatarrana
Ilustração de Shira Sela



"Então virou a cara para o outro lado do abismo. Tentou ver através da escuridão. Mas só se via escuridão. Ela, porém, pensou:

- Do outro lado do abismo está com certeza alguém.

E começou a chamar."


    

 Esta viagem é um percurso pessoal, primeiro a dois e depois de cada um, individualmente. 


Um percurso de incerteza, na curva do inesperado. 

Ilustração de Angela Morgan

Uma viagem que, como a fé, se joga na adversativa. E é nas adversativas que normalmente está a chave, o segredo, a novidade. A mulher só via escuridão, "porém" (adversativa) confiou que do outro lado do abismo estaria decerto alguém. E por isso se lançou e começou a chamar, cheia de esperança.

Mas (adversativa) para chegarmos à esperança, por vezes também precisamos de hermeneutas, de alguém que interprete os textos e nos ajude a entranhá-los.
 
Portefólio de Leituras recolheu e acolheu a interpretação luminosa do conto "A viagem", de Sophia de Mello Breyner Andresen, por Tolentino Mendonça.





26 de junho de 2012

Tudo é perfumado e belo

Ilustração de Daniela Giarratana



- Ah! - disse ela -, mesmo perdida, vejo como tudo é perfumado e belo. Mesmo sem saber se jamais chegarei, apetece-me rir e cantar em honra da beleza das coisas. Mesmo neste caminho que eu não sei onde leva, as árvores são verdes e frescas como se as alimentasse uma certeza profunda. Mesmo aqui a luz poisa leve nos nossos rostos como se nos reconhecesse. Estou cheia de medo e estou alegre.

 
Sophia de Mello Breyner Andresen, in "A viagem"

25 de junho de 2012

As meninas

Ilustração de Arthur de Pins
as minhas filhas nadam. a mais nova
leva nos braços bóias pequeninas,
a outra dá um salto e põe à prova
o corpo esguio, as longas pernas finas:

entre risadas como serpentinas,
vai como a formosinha numa trova,
salta a pés juntos, dedos nas narinas,
e emerge ao sol que o seu cabelo escova.

a água tem a pele azul-turquesa
e brilhos e salpicos, e mergulham
feitas pura alegria incandescente.

e ficam, de ternura e de surpresa,
nas toalhas de cor em que se embrulham,
ninfinhas sobre a relva, de repente. 


Vasco Graça Moura

Homenagem a Cesário Verde

Ilustração de Daniela Giarratana


Aos pés do burro que olhava para o mar
 

depois do bolo-rei comeram-se sardinhas

com as sardinhas um pouco de goiabada

e depois do pudim, para um último cigarro

um feijão branco em sangue e rolas cozidas



 





Ilustração de Kevin Sloan

Pouco depois cada qual procurou

com cada um o poente que convinha.

Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário Verde

que ainda há passeios ainda há poetas cá no país!
                                    Mário Cesariny

24 de junho de 2012

De Tarde

Ilustração de Cécile Aziliz Rouzay


Naquele pic-nic de burguesas
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Ilustração de Kasia Bajerowicz
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.



Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Ilustração de Jettie Rosenboon

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!
           
                                   Cesário Verde


Em especial aos domingos

Ilustração de Cocci Lune


Em especial aos domingos

quando ninguém está em casa

aí por finais de Junho

subo então ao terraço

para perceber além dos muros

a cidade silenciosa.


Tonino Guerra, in Histórias para uma noite de calmaria

23 de junho de 2012

Dino

Ilustração de Emilie Vast
Tinha bigode meu irmão e dançava o tango
agora vive com quatro mil patos
que chafurdam dentro do rio
entre as canas.
Se o convido para Roma
chega com duas folhas de alface
como se fosse
um canário na gaiola.
E todas as vezes que nos vemos
mesmo quando passou mais de um ano
damos as mãos e isso basta.


Tonino Guerra, in Histórias para uma noite de calmaria

22 de junho de 2012

Cinco sentidos

Ilustração de Mariana Kalacheva



Nós temos cinco sentidos:

são dois pares e meio de asas.

- Como quereis o equilíbrio?




David Mourão-Ferreira

21 de junho de 2012

Em todas as ruas te encontro


Ilustração de Mariana Kalacheva
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco

 
                                                        Mário Cesariny

Um ninho

Ilustração de Max D Sandley


Sei um ninho.

E o ninho tem um ovo.

E o ovo, redondinho,

Tem lá dentro um passarinho

Novo.


Miguel Torga

20 de junho de 2012

Junto ao fogo



Decidiu abandonar as mulheres e, por longo tempo, de facto, viveu só. Passeava, olhava as árvores e frequentava o café sem voltar o rosto para qualquer mulher bela.
Ilustração de Patricio Betteo

Mas um dia, uma jovem colocou-se a seu lado e disse-lhe que o amava. Durante muitos dias o homem recusou-a, até que a mulher deixou de vir ao café, desaparecendo sabe-se lá para onde.

Só agora, aquele tal, foi sacudido por tão grande amor que percorreu, a pé, toda a cidade, até que parou a conversar com uma daquelas mulheres que vive junto às fogueiras, na periferia. E nem reparou que era a mesma rapariga que o amava.


Tonino Guerra, in Histórias para uma noite de calmaria

18 de junho de 2012

Dança

Ilustração de Mariana Kalacheva


Eram a delicadeza, a graça.

Mas também a fúria

da gataria ardendo nos telhados.



São jovens e dançam - formosos

como as dunas, os trigos, os cavalos.


Eugénio de Andrade, in Pequeno Formato

17 de junho de 2012

Na hora de pôr a mesa


Ilustração de Eugenia Gapchinska
na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.


José Luís Peixoto, in A Criança em Ruínas

Uma biblioteca é um organismo em crescimento

A 5ª lei da biblioteconomia defendida por Ranganathan debruça-se sobre o dinamismo e a política de gestão das coleções, que deve privilegiar a utilidade e a utilização dos recursos que integra.

Ilustração de Ester García
A qualidade das bibliotecas não é hoje avaliada em função do número de documentos que disponibiliza mas sim do acesso que lhes proporciona. É o leitor que faz toda a diferença, pelo que a atual explosão bibliográfica exige uma gestão concertada e opções fundamentadas na gestão da coleção.



Poupe o tempo do leitor

Fotografia de Antonio Más Morales

Uma das regras de ouro de uma biblioteca funcional e amiga do leitor é a arrumação e organização dos documentos de modo a  diminuir o seu tempo de procura no livre acesso às estantes.


Esta é a 4ª lei do indiano Ranganathan, que se interessou pela biblioteconomia. 

16 de junho de 2012

Todo o leitor tem o seu livro


Fotografia de Antonio Más Morales
Qual o seu perfil de leitor? Poesia, prosa, ensaio filosófico? Leitura técnica ou recreativa? Romance histórico ou ficção pura? Em suporte de papel ou digital? Jornal, revista, livro ou e-book? Livros de grande fôlego ou contos de pequena extensão? De linguagem acessível ou em que prime a maestria estilísitico-conceptual?


Cada leitor, pelas suas características pessoais e até circunstanciais, pela fase da vida em que se encontra, prefere um determinado tipo de leitura a outro. Cabe a cada um descobri-lo. Os bibliotecários oferecem uma ajuda preciosa neste campo, conhecendo os utilizadores das suas bibliotecas e procurando responder aos seus interesses, curiosidades e necessidades intelectuais.

"Todo o leitor tem o seu livro" é a 3ª lei de Ranganathan.

Todo o livro tem o seu leitor

Ilustração de Jill Murphy

Os gostos e as tendências literárias são diferentes de leitor para leitor, sendo certo que a cada livro espera-o um perfil de leitor dedicado, quer seja o compulsivo, que tudo lê, quer seja aquele que por ele se interessa particularmente, pelo tema, pela abordagem, pela ilustração, pela oportunidade...

Enfim, o que convém mesmo é divulgar os livros, pois nunca se sabe quando neles tropeça o leitor interessado. 

"Todo o livro tem o seu leitor" é a 2ª lei da biblioteconomia introduzida pelo pensador indiano Ranganathan.

14 de junho de 2012

Os livros são para serem usados


Ilustração de Slawek Gruca
Os livros são objetos de prazer, de aprendizagem, de ócio e de negócio (na lógica dicotómica de lazer e de trabalho que a vida contempla). Nesse sentido, são encarados como um meio para atingir dimensões plenas da vida – em síntese, cultura, conhecimento e ócio.
Ilustração de Simon Cooper






Ilustração de Gurbuz Dogan
O fim último do livro é, efetivamente, ser lido, encontrar o seu leitor. À la limite, o seu objetivo último é o de promover e desenvolver competências, gerar conhecimento (científico, literário, filosófico, religioso, artístico, político, social, etc.), mas também divertir, formar, acompanhar percursos, contrariar a solidão…

"Os livros são para serem usados " é a 1ª de cinco leis instituídas para a Biblioteconomia pelo pensador indiano Shiyali Ranganathan.


As leis do livro

Ilustração de Mae Besom


1. Os livros são para serem usados


2. Todo o livro tem o seu leitor


3. Todo o leitor tem o seu livro


4. Poupe o tempo do leitor


5. Uma biblioteca é um organismo em crescimento



Estas são as Leis de Ranganathan, cinco leis fundamentais sobre o livro, instituídas por este professor de matemática indiano que se interessou pela biblioteconomia.

13 de junho de 2012

A mãe e a irmã


Ilustração de Margarita Sikorskaia

A mãe não trouxe a irmã pela mão

viajou toda a noite sobre os seus próprios passos

toda a noite, esta noite, muitas noites

A mãe vinha sozinha sem o cesto e o peixe fumado

a garrafa de óleo de palma e o vinho fresco das espigas vermelhas

A mãe viajou toda a noite esta noite muitas noites todas as noites

com os seus pés nus subiu a montanha pelo leste

e só trazia a lua em fase pequena por companhia

e as vozes altas dos mabecos.

A mãe viajou sem as pulseiras e os óleos de proteção

no pano mal amarrado

nas mãos abertas de dor

estava escrito:

meu filho, meu filho único

não toma banho no rio

meu filho único foi sem bois

para as pastagens do céu

que são vastas

mas onde não cresce o capim.

A mãe sentou-se

fez um fogo novo com os paus antigos

preparou uma nova boneca de casamento.


Nem era trabalho dela

mas a mãe não descurou o fogo

enrolou também um fumo comprido para o cachimbo.

As tias do lado do leão choraram duas vezes

e os homens do lado do boi

afiaram as lanças.


Ilustração de Graham Franciose
A mãe preparou as palavras devagarinho

mas o que saiu da sua boca

não tinha sentido.

A mãe olhou as entranhas com tristeza                   

espremeu os seios murchos

ficou calada

no meio do dia.


Ana Paula Tavares, in Dizes-me coisas amargas como os frutos




12 de junho de 2012

O presidente



Um pintor que não tinha jeito para as cores, mas pegava bem no pincel, foi escolhido para maestro da banda.
Ilustração de Alberto Godoy


A escolha foi feita pelo presidente da cidade, que era praticamente surdo, mas apreciava os gestos minuciosos do pintor. Foi a sua primeira e única decisão.

O presidente tinha sido eleito porque era muito indeciso e pelo menos assim não incomodaria ninguém. A população, no entanto, quando ouviu o primeiro concerto da banda, revoltou-se.

Voltem a dar uma tela ao maestro!, alguém gritou.

O presidente, satisfeito, depois da sua primeira decisão ao fim de quatro anos, e julgando que a população estava a gritar Bis, decidiu candidatar-se a um segundo mandato.

A população, apesar da música, elegeu-o de novo.

                                   Gonçalo M.Tavares, in O Senhor Brecht

11 de junho de 2012

Diamantes

Ilustração de Myrea Pettit

Em vez de uvas os cachos do reino deixavam cair sobre a terra diamantes.

- Diamantes, diamantes, diamantes! Há anos que é só isto - queixava-se o produtor.

Gonçalo M. Tavares, in O senhor Brecht

10 de junho de 2012

Hermann Hesse e a sabedoria da leitura


Ilustração de Jeannette Woitzik
O facto de nos obrigarmos a ler uma obra-prima só porque é celebérrima e nos envergonhamos de ainda não a conhecermos seria um grave erro. Cada um de nós deve começar a ler, conhecer e amar aquilo que lhe suscita espontaneamente essa vontade.



As vias são inumeráveis.


Ilustração de Dinis Mota
Cada um deve começar onde um poema, um canto, um conto, uma observação lhe tenham agradado e, partindo daí, ele deve ir à procura de coisas semelhantes.


...aquilo que conta não é a quantidade.


Hermann Hesse (2010:12-13), in Uma biblioteca da Literatura Universal, Cavalo de Ferro

9 de junho de 2012


estou deitado sobre a minha ausência,

como poderia estar deitado se existisse.

 amanhã as ondas imitar-me-ão na praia.



José Luís Peixoto, in A Criança em Ruínas

Ilustração de Svjetlan Junakovic

8 de junho de 2012

Coisas que caem dos olhos




PLIM… PLIM… Lágrimas. Imaginem vê‑las cair dos olhos, e que dentro está a vossa mãe com rosto de menina, acariciando os cabelos, ajeitando‑os atrás de uma orelha. Imaginem que veem dentro delas os rostos e os lugares da vossa vida… as montanhas, com os céus encostados, autoestradas e passagens desniveladas, e árvores que nadam na água salgada de pequenas lágrimas. E rebentam no chão, salpicando tudo à volta. Para não mais voltar. Tudo transbordou dos diques dos olhos, e escapou. Para sempre. Como a história que está para começar.

Gabriele Picco, in As coisas que te caem dos olhos, Prólogo

6 de junho de 2012

Como hão-de ser as palavras?

Ilustração de António João Santos e João Rodrigues




Como as estrelas.


As estrelas são muito distintas e muito claras.



Pe. António Vieira, in Sermão da Sexagésima, cap. V

5 de junho de 2012

Atravessara o verão para te ver

Ilustração de Mariana Kalacheva












dormir, e trazia doutros lugares

um sol de trigo na pupila;

às vezes a luz demora-se

em mãos fatigadas; não sei em qual

de nós explodiu uma súbita

juventude, ou cantava:

era mais fresco o ar.

Quem canta no verão espera ver o mar.


Eugénio de Andrade, in O Peso da Sombra

4 de junho de 2012

Eu ia com a noite pelas ruas


Ilustração de Ingrid Tusell

descuidadas que levam ao teu corpo.

Não sei que vozes se cruzaram

com a manhã de junho dos meus olhos,

mas sempre vozes ou a sombra delas

cortaram os passos ao desejo.

Perdi-me em nevoeiros que de súbito

sobre a cidade caíram, ou em mim.



Eugénio de Andrade, in O Peso da Sombra

3 de junho de 2012

Apenas um rumor

Ilustração de Vincent Gibeaux


E no teu rosto aberto sobre o mar

cada palavra era apenas o rumor

de um bando de gaivotas a passar.




Eugénio de Andrade, in Os Amantes do dinheiro