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30 de maio de 2012

Folha

Ilustração de Joanna Concejo
Era uma folha pousada
no cotovelo do vento;
 e pairava, deslumbrada,
 entre morte e movimento.

 Era uma folha: lembrava,
de tão frágil, o momento
em que a vida ficava
escrava do teu juramento.


 Era uma folha: mais nada.
Antes fosse esquecimento!


 David Mourão-Ferreira


29 de maio de 2012

A Jorge Peixinho

Ilustração de Silvia Lugli



Faltava-te essa música ainda,

a do silêncio, fria de tão nua,

agora para sempre e sempre tua.

 

Eugénio de Andrade, in Pequeno Formato

27 de maio de 2012

Frutos

Pêssegos, peras, laranjas,
morangos, cerejas, figos,
maçãs, melão, melancia,
ó música de meus sentidos, pura delícia da língua;
deixai-me agora falar
do fruto que me fascina,
pelo sabor, pela cor,

Ilustrações de Dennis Wojtkiewicz
pelo aroma das sílabas:
tangerina, tangerina.


Eugénio de Andrade, in Pequeno Formato

26 de maio de 2012

Falsa lógica

Ilustração de Fernando Rubio Monroy
Ela sai para o alpendre de casa todas as manhãs e exclama:

- Que esta casa esteja protegida dos tigres! - E, em seguida, volta para dentro.

Por fim, nós dissemos-lhe:

- Para que é aquilo? Não há um único tigre num raio de mil e quinhentos quilómetros.

- Estão a ver? Resulta! - foi a sua resposta.



Thomas Cathcart e Daniel Klein, (2007: 54), in Platão e um Ornitorrinco entram num bar...Filosofia com humor

25 de maio de 2012

Ilustração de Juri Romanov


Cliente num restaurante: Como é que prepara os seus frangos?

Cozinheiro: Oh, no fundo não fazemos nada especial. Limitamo-nos a dizer-lhes que vão morrer.


Thomas Cathcart e Daniel Klein, (2007: 154), in Platão e um Ornitorrinco entram num bar...Filosofia com humor

23 de maio de 2012

O homem invisível

Ilustração de Emilie Vast

Secretária: Doutor, está um homem invisível na sala de espera.

Médico: Diga-lhe que não posso vê-lo.





Thomas Cathcart e Daniel Klein, (2007: 85), in Platão e um Ornitorrinco entram num bar...Filosofia com humor

22 de maio de 2012

Milagre da artrite

O velho "Doc" Bloom, o proprietário da loja de ferragens local que era famoso pelas curas milagrosas da artrite, tinha uma longa fila de "pacientes" à espera do lado de fora da porta quando uma senhora idosa baixinha, completamente curvada, entrou lentamente, apoiada na bengala.
Quando chegou a sua vez, entrou na sala das traseiras da loja e, surpreendentemente, saiu meia hora depois a caminhar completamente direita e com a cabeça bem erguida.

Ilustrações de
Maria Jose Olavarria Madariaga, pormenores
Uma mulher que estava à espera na fila, disse:

- É um milagre! A senhora entrou curvada ao meio e agora está a andar direita. Que é que o Doc fez?

- Deu-me uma bengala mais comprida - respondeu ela.   



Thomas Cathcart e Daniel Klein, (2007: 80), in Platão e um Ornitorrinco entram num bar...Filosofia com humor

20 de maio de 2012

Surdez...

Ilustração de Isabel Barriel


Um homem está preocupado porque pensa que a mulher está a ficar surda, por isso vai ao médico. O médico sugere-lhe que experimente um simples teste em casa: parar atrás dela e fazer-lhe uma pergunta, primeiro a seis metros, depois a três metros e, por fim, mesmo atrás dela.
O homem vai para casa e vê a mulher na cozinha, virada para o fogão. Da porta, pergunta:
- Que vamos jantar esta noite?
Nenhuma resposta.
Três metros atrás dela, repete:
- Que vamos jantar esta noite?
Ilustração de Ingrid Aspock
Continua sem resposta.
Por fim, mesmo atrás dela, pergunta:
- Que vamos jantar esta noite?
A mulher volta-se e diz:
- Pela terceira vez...frango!

Não há dúvida de que este casal tem um sério problema de interpretação de dados dos sentidos.



Thomas Cathcart e Daniel Klein, (2007: 74-75), in Platão e um Ornitorrinco entram num bar...Filosofia com humor

19 de maio de 2012

Despertar

Ilustração de Joanna Concejo

É um pássaro, é uma rosa,
é o mar que me acorda?
Pássaro ou rosa ou mar,
tudo é ardor, tudo é amor.
Acordar é ser rosa na rosa,
canto na ave, água no mar.

                                             

                                 Eugénio de Andrade

18 de maio de 2012

Niñas con Cerezas
Pintura a óleo de María Santana Gómez 



Mas na metrópole há cerejas. Cerejas grandes e luzidias que as raparigas põem nas orelhas a fazer de brincos. Raparigas bonitas como só as da metrópole podem ser.  As raparigas daqui não sabem como são as cerejas...


 Dulce Maria Cardoso, in O Retorno 

16 de maio de 2012

O espelho


Ilustração de Akzhana Abdalieva

Subitamente (...), eu vi que estava alguém mais no quarto. (...)

Olhei. Quem estava diante de mim era eu próprio, reflectido no grande espelho do guarda-fatos. (...)

Diante de mim estava uma pessoa que me fitava com uma inteira individualidade que vivesse em mim e eu ignorava. Aproximei-me, fascinado, olhei de perto. E vi, vi os olhos, a face desse alguém que me habitava, que me era e eu jamais imaginara.

Vergílio Ferreira, in Aparição

15 de maio de 2012

14 de maio de 2012

Escrevo para ser


Ilustração de Ford Smith
Fecho o álbum, acendo um cigarro. Para lá da janela atinjo a linha azul do horizonte que se desvanece na tarde. Penso, penso. Não, não penso, procuro. Outra vez, outra vez. Não, não quero “saber”, sei já há tanto tempo…Mas nenhum saber conserva a força que estala no que é aparição. Porque o escrevo de novo? A verdade é que nada mais me importa. E todavia, um estranho absurdo me ameaça: quero saber, ter, e uma aparição não se tem, porque não seria aparecer, seria estar, seria petrificar-se. Queria que a evidência me ficasse fulminante, aguda, com a sua sufocação, e aí, na angústia, eu criasse a minha vida, a reformasse. Mas uma reforma, uma regulamentação é já do lado de fora. Quem é fiel a uma certeza e a pode ver quando lhe apetece? (…) Não escrevo para ninguém, talvez, talvez: e escreverei sequer para mim? O que me arrasta ao longo destas noites (…), o que me excita a escrever é o desejo de me esclarecer na posse disto que conto, o desejo de perseguir o alarme que me violentou e ver-me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na própria posse, que é recuperá-lo pela evidência da arte. Escrevo para ser, escrevo para segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu.
Fecho o álbum, acendo um cigarro. 

Vergílio Ferreira, Aparição, Ed. Bertrand, Cap. XVII

13 de maio de 2012

O álbum da tia Dulce


Ilustração de Alexander Mikhnushev
Subitamente, no meio da confusão da livralhada, descubro o álbum da tia Dulce. Estou cansado e sento-me. É um álbum velho, pesado como o tempo. A capa arredonda-se em almofada, com uma dama antiga, em tons verdes e brancos, segurando no regaço um leque fechado. (…) Retrato de grupo há só um. Mas as figuras não estão centradas para um ponto único, não nos olham nem se olham (…). Cerro os olhos e sei de novo que toda esta gente morreu. Mas o que mais me perturba é pensar que o rasto dessa gente está suspenso de mim. Porque eu tenho ainda uma pequena notícia da sua vida, o eco apagado do que foi a massa complexa do seu ser e sentir. Tia Dulce contou-me. (…) Mas de muitos retratos já nada sei. São esses que eu fito com mais angústia. Têm olhos espantados ou risonhos ou sérios. Que medos, que sonhos, que virtudes lhes inventaram a vida em eternidade? Mas vós estais mortos e ninguém vos julga e ninguém vos ouve. Que sei, porém, de vós outros, meus amigos? (…) Frágeis fios destas imagens amarelecidas, convergindo para mim, para a minha memória cansada, presos do futuro por uma breve referência, uma nota, uma etiqueta. Terei um filho talvez. Eu lhe contarei o que sei de vós. Mas ele o esquecerá talvez, ou o filho do meu filho, ou o filho do filho do meu filho. Então aparecereis num recanto do sótão, absurdos, incríveis, inquietantes (…). Mas agora ainda estais vivos, ainda alguém, eu, aqui, silencioso nesta casa solitária, vos liga à vida que freme para lá destes muros na Primavera anunciada, nas primeiras andorinhas que me buscam o beiral, na planície aberta de esperança. Sede vivos neste instante infinitesimal em que vos fito e vos sei um nada do vosso convulso e rico e inverosímil milagre.

Vergílio Ferreira, Aparição, Ed. Bertrand, Cap. XVII

12 de maio de 2012

Metamorfoses

 

Bernardo Sassetti, banda sonora do filme Alice


Nous vivons dans l'oubli de nos métamorphoses.

                                                          Paul Eluard, in Le Dur Désir de durer

10 de maio de 2012

Poema

Ilustração de Ford Smith
Se o sol se atravessa no caminho de um homem,
a luz pode empurrá-lo para o sonho. Então, fecha
os olhos; espera que as imagens se apaguem
do seu horizonte; e entra no vazio que a treva
lhe oferece. O sol, porém, continua
a brilhar. E ele insiste em manter os olhos
fechados. Anda, com passos hesitantes, num
caminho de luz; as mãos procuram um apoio
na sombra que não encontra. E quando volta
a abrir os olhos, os sonhos continuam à sua
frente, como se fizessem parte do seu destino.

                                          Nuno Júdice, in A matéria do poema

8 de maio de 2012

O que seria de nós, os velhos...

Ilustração de Antonio Seijas

O que seria de nós, os velhos, se não tivéssemos esse livro ilustrado que é a memória, toda essa riqueza de experiências vividas! Seria uma situação lamentável, seríamos uns miseráveis. Deste modo, porém, somos imensamente ricos e não nos limitamos a arrastar uma carcaça cansada, de encontro ao fim e ao esquecimento; somos guardiães de um tesouro que viverá e resplandecerá enquanto nós próprios respirarmos.

                                                                                                          Hermann Hesse, in Elogio da Velhice

7 de maio de 2012

Os papéis de K.

Quando lemos uma obra, o que nos faz reconhecer que estamos perante uma obra literária? O que nos diz que ou se se trata ou não de literatura ?

Ilustração de Sam Hyuen Kim
Perante Os Papéis de K., de Manuel António Pina, a suspeita começou com a leitura da contra-capa (abstendo-me da irredutibilidade de estar perante o vencedor do Prémio Camões 2011), que anunciava a relação escritor/leitor e a relação ficcional do leitor com o próprio texto e fazia adivinhar uma construção narrativa complexa, para não dizer hábil.

A leitura de tão breves páginas (cerca de 70) foi emocionante, imparável. E surpreendente. Surpreendente pela clareza e fluidez (quase contenção!) da linguagem num processo narrativo que vai desvelando as personagens que se inventam e reinventam. Terá sido, afinal, tudo inventado?

"De qualquer modo, a memória é uma ficção e o passado uma espécie de sonho que nos sonha tanto quanto o sonhamos nós. Mas será que dois homens podem sonhar o mesmo sonho, ou o mesmo sonho sonhá-lo a ambos?" (p. 75).

Sonho, ficção, alucinação, construção... não será isso mesmo a literatura? Construção, sim, pois à aparente simplicidade, ao aparente fluir da escrita subjaz a arquitetura narrativa na construção, no entretecer de apagar e refazer (desfazer?) as personagens e a diegese.

Manuel António Pina, Os Papéis de K., uma questão indubitável de literatura. Para quem gosta de apreciar a arte da escrita. Para ler e reler. E envolver-se.

Mª Carla Crespo

6 de maio de 2012

Mãos de mãe

Ilustração de Annette Mangseth
Noite após noite, a minha mãe vinha aconchegar-me, mesmo quando eu já deixara há muito de ser criança. Tal como outrora, inclinava-se sobre mim, afastava o meu cabelo comprido e beijava-me a testa.

Não me lembro de quando o gesto das suas mãos a afastar o meu cabelo começou a irritar-me. Mas aborrecia-me deveras que ela passasse as mãos ásperas e gastas pelo trabalho sobre a minha pele macia. Uma noite gritei, zangada:

—Não faças mais isso! As tuas mãos são muito ásperas!

A minha mãe não disse nada, mas nunca mais aquele gesto de amor rematou os meus dias. Continuei acordada muito tempo depois de ter proferido aquelas palavras, que agora me perseguiam. Contudo, o orgulho abafou a consciência e não consegui dizer-lhe o quanto lamentava tê-las proferido.
Os anos foram passando, sem que a memória daquela noite se apagasse. O incidente, que ora parecia recente ora se afigurava longínquo, nunca me saiu da mente e eu comecei a ter saudades daquele gesto que reprimira.

Hoje a minha mãe já ultrapassou os setenta anos e as mãos que outrora achei tão ásperas ainda trabalham para mim e para os meus. É ela que tem sido a nossa médica, ao procurar no armário o remédio para aliviar uma dor de estômago ou de um joelho ferido dos mais novos. É ela que faz o melhor frango frito do mundo, que tira as nódoas das calças de ganga como eu nunca consegui, que ainda insiste em servir gelado a qualquer hora do dia ou da noite. Ao longo dos anos, as mãos da minha mãe trabalharam durante horas incontáveis, muito antes de haver máquinas de lavar e tecidos resistentes que não engelham.

Agora, os meus filhos já são crescidos e independentes e o meu pai já faleceu. Em ocasiões especiais, vou passar a noite com ela.

E foi assim que, numa véspera do Dia de Ação de Graças, quando eu começava a adormecer no quarto da minha infância, senti uma mão conhecida, que passava, hesitante, pelo meu rosto, para afastar o cabelo da minha testa. Quando um beijo, sempre igualmente gentil, pousou no meu sobrolho, recordei, pela milésima vez, a noite em que a minha voz jovem e ríspida soara indignada:
Il. Annette Mangseth (pormenor)
—Não faças mais isso. As tuas mãos são muito ásperas!

Então, segurando a mão da minha mãe, disse-lhe o quanto lamentava aquela noite. Pensei que, como eu, ela se lembrasse... Mas a minha mãe não sabia do que eu estava a falar, pois há muito que tinha esquecido e perdoado.

Naquela noite, adormeci profundamente grata pela presença da minha mãe e pelo carinho das suas mãos.

E a culpa que eu tinha carregado durante tantos anos desvaneceu-se.

Louisa Godissart McQuillen
Jack Canfield, Mark Victor Hansen
A Second Chicken Soup for the Woman’s Soul
HCIbooks, Deerfield Beach, 1998
(Tradução e adaptação)

Poema à mãe


Ilustração de Sam Hyuen Kim
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
 

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
       Era uma vez uma princesa
      no meio de um laranjal...

Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.       
Ilustração de Nichole Lillian


                                  Eugénio de Andrade, in Os Amantes Sem Dinheiro

5 de maio de 2012

Da mãe à explosão da flor

Ilustração de Cececila Webber

Era como se o tivessem exposto nu
na esperança de que o sol o esfolasse
ou a chuva lavasse aquela mancha
vinda das trevas do ventre materno,
das entranhas de todas as mães
de sua mãe, secretamente, até explodir
e ser flor aberta no seu corpo.

                                            Eugénio de Andrade, in Matéria Solar

4 de maio de 2012

Sesimbra

Ilustração de Fuco Ueda



Primeiro a mão, ou antes, o mar,
só depois a rosa, a dança do ar.

Eugénio de Andrade

2 de maio de 2012

Deus escreve direito


Ilustração de Luís Silva
Deus escreve direito por linhas tortas
E a vida não vive em linha recta
Em cada célula do homem estão inscritas
A cor dos olhos e a argúcia do olhar
O desenho dos ossos e o contorno da boca
Por isso te olhas ao espelho:
E no espelho te buscas para te reconhecer
Porém em cada célula desde o início
Foi inscrito o signo veemente da tua liberdade
Pois foste criado e tens que ser real
Por isso não percas nunca o teu fervor mais austero
Tua exigência de ti e por entre
Espelhos deformantes e desastres e desvios
Nem um momento só podes perder
A linha musical do encantamento
Que é teu sol tua luz teu alimento

                                                Sophia de Mello Breyner Andresen

1 de maio de 2012

Primavera

Ilustração de Lorena Alvarez
Primavera que Maio viu passar
Num bosque de bailados e segredos
Embalando no anseio dos teus dedos
Aquela misteriosa maravilha
Que à transparência das paisagens brilha.

                      
              Sophia de Mello Breyner Andresen