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9 de dezembro de 2011

Pesca literária


A minha posição de leitora é a de adesão a As Pequenas Memórias, tal como o narrador se extasiou com um peixe de água doce que não chegou a pescar. Dedicou-lhe, porém, o silêncio, a espera, a contemplação que o tornaram único no mundo, como o principezinho para a raposa em Saint-Exupéry: “Não creio que exista no mundo um silêncio mais profundo que o silêncio da água. Senti-o naquela hora e nunca mais o esqueci. (…) De uma maneira ou de outra, porém, com o meu anzol enganchado nas guelras, [o peixe] tinha a minha marca, era meu” (p. 86).

Mulher ou peixe
 Ilustração de Jaroslav Betehtin
Também o livro As Pequenas Memórias passou a fazer parte da minha vida de leitora. É meu. Ao contrário de “aquele barbo” do narrador, pesquei-o!

Uma questão de literatura

Aprecie-se ou não José Saramago, o autor/escritor/homem, ou alguma temática ou estilo das suas obras, certo é que estamos perante páginas de literatura em As Pequenas Memórias.
La noche pasa… la lectura queda
(ilustração de Violetno)

A propriedade lexical, que consiste em nomear cada objeto ou realidade com um vocábulo preciso, compagina-se com a novidade e liberdade semânticas que o levam a associar com criatividade uma realidade já existente a outra que lhe ocorre, adaptando, por exemplo, expressões idiomáticas em “Também inutilmente se chorará o azeite derramado” (numa associação fonética de “leite” com “azeite”, remetendo para o contexto descrito dos “velhos olivais” (p.15) ou em “a minha memória de infante” (p.33), num processo de paronímia com “memória de elefante”, criando assim, pelo trocadilho, uma antítese, pois a sua memória de criança não lhe permitia alcançar ainda a prodigiosa recordação do tempo em que teriam começado as desavenças familiares.

A maestria estilística manifesta-se tão simplesmente na tripla adjetivação que revela como num balão (“aquele era nada mais nada menos que o meu primeiro balão em todos os seis ou sete anos que levava de vida”) pode caber o universo onírico, fantástico de uma criança, ainda que gorado quando se esvazia (“Aquela coisa suja, enrugada e informe era realmente o mundo” (p.77)) ou ainda no tom coloquial que mantém com o leitor, aproximando-o das suas vivências ou retificando as suas memórias, precisando factos ou a sua sucessão: “Como acaba de se ver, não andava equivocado quando escrevi que havíamos vivido duas vezes na Rua Carrilho Videira, mas já foi o engano gravíssimo quando (…) acrescentei que estava na idade de onze anos quando do episódio com a Domitília. Nada disso. Na verdade, eu não teria mais que seis, e ela andaria pelos oito” (p.119).

Esta familiaridade com o leitor cria, de facto, por momentos, a sensação de que o narrador (ou mesmo o autor?) se nos dirige, como se nos respeitasse a ponto de retificar a informação biográfica que vai tecendo entre as páginas. Mas não será a verosimilhança tão somente mais um traço da magnitude literária da narrativa? Pouco importa que o autor de Todos os Nomes tenha tido estas ou aquelas (inúmeras) aventuras amorosas. O certo é que nos deixa presos à escrita quais bacorinhos na cama dos avós. 

Mª Carla Crespo